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Continuamos nossas reflexões sobre a lógica que nos leva a escolher situações difíceis a enfrentar e nossas expectativas ao optar viver experiências desagradáveis.
Livro dos Espíritos
Segunda Parte
Capítulo VI
Item 5. Escolha das provas
266. Não parece natural escolher as provas menos penosas?
“Para vós, sim; para o espírito, não; quando desligado da matéria, a ilusão cessa e ele pensa de uma outra maneira.”
O homem, na Terra, e sob a influência das ideias carnais, só vê o lado penoso dessas provas; é por isso que lhe parece natural escolher as que, do seu ponto de vista, podem aliar-se aos gozos materiais; mas, na vida espiritual, ele compara esses gozos fugidios e grosseiros com a felicidade inalterável que entrevê e, assim sendo, o que lhe poderiam causar alguns sofrimentos passageiros? O espírito pode, portanto, escolher a prova mais rude e, por conseguinte, a existência mais penosa, na esperança de alcançar mais depressa um estado melhor, como o enfermo escolhe, frequentemente, o remédio mais desagradável para se curar mais rápido. Aquele que quer ter seu nome ligado à descoberta de um país desconhecido não escolhe uma estrada florida; sabe dos perigos que corre, mas sabe, também, da glória que o aguarda, se tiver êxito.
A doutrina da liberdade na escolha de nossas existências e das provas que devemos suportar deixa de parecer extraordinária, se considerarmos que os espíritos, desligados da matéria, apreciam as coisas de uma maneira diferente daquela segundo a qual nós próprios apreciamos. Percebem o objetivo, objetivo muito mais sério para eles do que os gozos fugidios do mundo; depois de cada existência, veem o passo que deram e compreendem o que ainda lhes falta em pureza para atingi-lo: eis por que submetem-se, voluntariamente, a todas as vicissitudes da vida corporal, pedindo, eles próprios, as que podem fazer com que alcancem mais depressa. É, portanto, sem-motivo que se espantam de não ver o espírito dar preferência à existência mais suave. Dessa vida isenta de amargura, ele não pode fruir, no seu estado de imperfeição; ele a entrevê e, para atingi-la, é que procura se melhorar.
Aliás, não deparamos todos os dias com o exemplo de coisas semelhantes? O homem que trabalha uma parte de sua vida, sem-trégua nem descanso, para acumular haveres que lhe assegurem o bem-estar, o que faz, senão executar uma tarefa que impõe a si mesmo, tendo em vista um futuro melhor? O militar que se oferece para uma missão perigosa, o viajor que desafia não menores perigos, no interesse da Ciência ou de sua fortuna, o que fazem também, senão enfrentar provas voluntárias que devem proporcionar-lhes honra e proveito, se as superarem? A que o homem não se submete e não se expõe pelo seu interesse ou pela sua glória? Todos os concursos não são também provas voluntárias a que nos submetemos, tendo em vista nos elevar na carreira que escolhemos? Não se ascende a qualquer posição superior nas ciências, nas artes, na indústria, senão passando pela escala das posições inferiores que são outras tantas provas. A vida humana é, assim, a cópia da vida espiritual; nela encontramos, em ponto pequeno, todas as mesmas peripécias. Se, portanto, na vida, escolhemos, frequentemente, as provas mais rudes, em vista de um objetivo mais elevado, por que o espírito que enxerga mais distante do que o corpo e para quem a vida do corpo é somente um incidente fugidio, não faria a escolha de uma existência penosa e laboriosa, se ela o conduzisse a uma felicidade eterna? Os que dizem que já que é o homem quem escolhe sua existência, pedirão para ser príncipes ou milionários, são como míopes que só veem aquilo que tocam ou, como essas crianças gulosas, a quem se pergunta o que desejam ser e que respondem: confeiteiro ou doceiro.
Assim é o viajante que, no fundo do vale escurecido pelo nevoeiro, não enxerga a extensão, nem os pontos extremos de sua estrada; tendo chegado ao cume da montanha, abarca o caminho percorrido e o que lhe resta a percorrer; vê seu objetivo, os obstáculos que ainda terá que transpor e pode, então, organizar com mais segurança os meios de chegar. O espírito encarnado é como o viajante no sopé da montanha; desligado dos liames terrestres ele vê mais longe como aquele que se encontra no topo do monte. Para o viajante, a meta é o repouso, após a fadiga; para o espírito é a felicidade suprema, após as tribulações e as provas.
Todos os espíritos dizem que no estado errante, eles pesquisam, estudam, observam para fazer a sua escolha. Não temos um exemplo deste fato na vida corporal? Não buscamos, frequentemente durante anos, a carreira na qual fixamos, livremente, nossa escolha, porque acreditamo-la mais apropriada para realizar nosso caminho? Se fracassamos numa, procuramos uma outra. Cada carreira que abraçamos é uma fase, um período da vida. Cada dia não é empregado em imaginar o que faremos no dia seguinte? Ora, o que são as diferentes existências corporais para o espírito, senão fases, períodos, dias para sua vida espiritual, que é, como o sabemos, sua vida normal, sendo a vida corporal apenas transitória e passageira?
Tradução de Maria Lucia Alcantara de Carvalho. 2. ed. — Rio de Janeiro: CELD, 2011.
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